A TRISTE EXPERIÊNCIA ELEITORAL

MIGUEL REALE

  

                   A esta altura do processo eleitoral, tão cheio de surpresas e de incorrigíveis enganos, que nos conduzem a um preocupante quatriênio presidencial, torna-se escancaradamente evidente o erro em que incorremos, deixando de dar caráter prioritário à reforma política, reclamada pelos maiores politicólogos e constitucionalistas do país.

                   Nada, em verdade, prejudicou tanto a nação como a falta de um “sistema de poder” ou “forma de governo”, tão confusa e contraditória é, a esse respeito, a Constituição de 1988, elaborada mais por iluminados do que por iluministas, divorciados da realidade brasileira, com a ilusão de estarem promulgando uma Carta salvadora, a tão proclamada “constituição cidadã”...

                   A bem ver, a única parte que dela se salva é a relativa aos “direitos do cidadão”, cuidadosamente enumerados no famoso Artigo 5º, mas sem a garantia de um regime político adequado às nossas circunstâncias histórico-sociais. O fato é que, até agora, ficamos suspensos entre presidencialismo e parlamentarismo, tal o emaranhado de valores e idéias conflitantes em que se perdem nossos mandamentos constitucionais. Na esperança de alguma solução houve até mesmo um plebiscito que, quase por unanimidade, marcou inutilmente preferência pelo presidencialismo, não tendo nossos parlamentares conseguido entrar em acordo quanto à forma a ser-lhe dada, pois, com exceção dos Estados Unidos da América, o que hoje em dia prevalecem são formas mistas de regime presidencial e parlamentar.

                   Se tivéssemos tido a capacidade de compor um sistema misto adequado, com um presidente e um primeiro ministro dividindo as responsabilidades do poder, como se dá na França, a eleição ainda em curso nos teria poupado a luta pessoal entre dois candidatos que não chegaram a definir clara e objetivamente os respectivos programas de governo.

                   Ora, tal situação se deve à nossa falta de educação política, não somente da massa dos eleitores, mas também por parte de nossos líderes políticos que sempre preferiram as artimanhas dos acordos partidários a soluções objetivas e cautelares previstas na Carta Magna.

                   No quadro legislativo agora resultante do voto popular, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, com quatro ou cinco partidos dominantes em confronto com muitas legendas inexpressivas, já se pode prever como será o governo em 2.003, com um Presidente da República às voltas com combinações imprevisíveis e pouco seguras. Teremos um presidencialismo imposto pelos resultados eleitorais, obedecendo a momentâneas conjunturas, com um Chefe da Nação exposto às mais diversas exigências parlamentares, e, desse modo, sem condições de realizar as promessas feitas ao eleitorado que o elegeu.

                   Já se pode prever, em suma, um governo modelado pelas facções partidárias, num jogo intrincado de interesses pessoais e corporativos, pouco espaço restando para o primado das soluções políticas e administrativas exigidas pelo bem comum.

                   Só nos resta a esperança de que o futuro presidente da República tenha força bastante para promover a revisão constitucional do “sistema de poder”, sem o qual sua chefia será ilusória, numa trama de “arreglos” pouco consistentes.

                   É claro que a revisão constitucional, promovida para assegurar a governabilidade do País, não poderá deixar de abranger a mudança na legislação eleitoral, sendo, a meu ver, aconselhável a instauração de uma eleição com base em distritos a serem estabelecidos pelos Tribunais Eleitorais, reservado aos partidos o direito de, em convenção nacional, estadual ou municipal, organizar a “lista preferencial” de seus candidatos, na proporção de cinqüenta por cento.  Se a democracia contemporânea é, no dizer de Sartori, uma “partidocracia”, nada de mais justo do que se atribuir aos partidos o direito de organizar a relação dos representantes  de sua escolha, mais capazes de realizar seus programas.

                   Se já prevalecesse entre nós o sistema distrital misto, como na Alemanha, não teríamos passado pelo resultado da eleição do deputado Eneas com centenas de milhares de votos a ele atribuídos em todo o colégio eleitoral do Estado, para absurdo benefício de seus não votados companheiros de legenda.

                   Por outro lado, se  já realizada a revisão política, ter-se-ia posto fim à absurda faculdade que tem o candidato a senador de indicar seus dois suplentes, em geral sua mulher, um filho, um cunhado, ou um amigo, como se deu no último pleito. Nas eleições majoritárias, não deveria haver suplentes de confiança dos chefetes regionais, galadoardos, às vezes, com longo mandato sem terem recebido um só voto. Caberia, mais uma vez, às convenções partidárias a escolha da lista dos suplentes, figuras representativas da agremiação. Com o sistema ora em vigor, o que se consagra é a vontade prepotente dos líderes locais, em conflito com os mais claros princípios democráticos.

                   Além disso, a legislação vigente, que não estabelece adequados limites mínimos de votos (a chamada “cláusula de barreira”) exigidos como conditio sine qua non para que uma agremiação partidária possa usufruir das prerrogativas parlamentares, permitiu a participação no Congresso de partidos inexpressivos, que ainda não lograram constituir parcela significativa da opinião pública. Com isso tivemos deputados eleitos com poucas centenas de sufrágios, como se deu com o PRONA e outros pequenos partidos.

                   O resultado é a existência de um número considerável de legendas partidárias, interferindo indevidamente nas decisões políticas, o que redunda na ingovernabilidade de um país baseado no pretenso “presidencialismo puro”, que, mais uma vez, demonstra sua total inconveniência.

 

                                                                                              26/10/02